segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Moreno e Durvinha

Uma outra Saga
Por Mariana Pimenta

Moreno e Durvinha foram cangaceiros do bando de Virgínio, cunhado de Lampião. Entraram para o cangaço na década de 30 e abandonaram as armas no início de 1941, quando se viram sozinhos no sertão. O cangaço acabara em 1940, com a morte de Corisco. Subiram o rio São Francisco até Augusto de Lima, onde mudaram de nomes e construíram uma família.

Durvinha

Meu nome de batismo é Durvalina Gomes de Sá. Eu nasci em 1915 no Arrasta-pé, que era a fazenda de meu pai e que, hoje, é um povoado da cidade de Paulo Afonso, na Bahia. Nessa fazenda tinha criação de gado, cabrito e cavalo. Nós não saíamos da fazenda não, tinha tudo lá, plantávamos feijão, algodão... A minha infância foi só trabalho. Meu pai não dava tempo para mim, não. Ele era muito bravo. Minha mãe, coitada, era boa demais.

Nunca levei um tapa de minha mãe, mas meu pai, de vez em quando, dava um couro na gente. Éramos dez irmãos, quatro mulheres e seis homens. Lá não tinha escola que desse para os meninos irem estudar e voltar para trabalhar. Todas eram muito longes e os meninos faziam falta na fazenda. Meu pai agarrou lá um tal de mestre e pôs uma casa separada para os meninos estudarem. O mestre começou até bem, caprichando, brincando, chamava as moças para assistir o recreio. Até que começou a bater na gente. Batia mesmo. Ele perguntava e quem não falasse a letra certa ele metia a palmatória, que se chamava “celibó”. Era redonda, pesada e tinha um prego amarelo na frente. No primeiro dia que fui à escola, o vi bater em minha irmã. Ele deu 12 bolos em Rosinha, e ela dizia:  

“Ai, meu mestrinho, pelo amor de Deus”.

Nunca mais fui à escola. Pedi: “Meu papai, pelo amor de Deus, não me põe na escola não, me deixa crescer mais. Ele bateu tanto em Rosinha que eu fiquei com medo dele bater em mim”. Então ele decidiu que eu iria ajudá-lo no serviço. Aprendi o ABC de ouvir, e só isso que sei. Ajudava papai a cortar mandacaru e mucambeira para o gado no tempo de seca e tinha que dar aquela ração pro gadozinho de noite comer.

Eu fi cava só trabalhando. Quando era para ir a uma festa, era em tapa de casa. A tapa de casa era assim: fazia a casa, poisava as madeiras, punha umas tabocas e ali as moças marcavam a embarreação da casa. No dia em que as moças buscavam a água para por no barro para os homens embarrear a casa, tinha festa de noite e nós dançávamos valsa. Eu até tinha um irmão que gostava de tocar. O meu vestido quem fazia era mamãe, que era costureira. Avião, o primeiro que eu vi no mundo eu estava na casa de meu pai. Nós
estávamos no sítio e ouvimos aquela zoeira.  
“O que é isso?”, perguntei,
e papai disse: “É o zepelim que vai avoando para pousar lá em Pernambuco”.
Acho que ele pousava no ar.

Tinha até uma cantiga:
“Santos Dumont foi quem inventou
Ninguém nunca fez balão assim
Vamos todos aqui brevemente
No colosso balão zepelim
Didi, dada
E vamos todos no vôo do jequiá
Didi, dada
E vamos todos no vôo do jequiá”.
Eu ouvia falar em Lampião num nordeste longe, quando deitava de noite no terreiro. Tinha uma tal de esteira de tabul que põe no terreiro em noite de lua clara, e a gente deitava lá para conversar, e meu pai contava história. O relâmpago relampeava lá longinho, naquela pontinha. “É Lampião”, meu pai falava, “que vem chegando perto. Olhe ele pondo a língua lá”. Era o relâmpago. Falava só de destruição dele, de bagunça que ele fazia. Eu nem ligava não.

Quando é um dia, nós estávamos lá em casa e chega aquela homenzaiada, montada a cavalo, cada cavalo bonito, e tomou conta do terreiro. Lampião era cego de um olho e tinha os cabelos tudo grande. Nós éramos umas mocinhas novas, tudo bonitinha. Eles entreteram ali. Montaram no cavalo e saíram cantando, bonito mesmo:  
“Quem parte, parte chorando, quem fica, vida não tem. Adeus que eu já vou embora, não amo mais a ninguém”.
No grupo tinha um irmão de Lampião, Ezequiel. Dos irmãos dele, só tinha esse lá. Os outros já tinham morrido nos combates. Despediram e foram embora. Eu não tinha 15 anos. Era novinha. Só tinha tido menstruação duas vezes. Quando é um dia, meu pai chega lá em casa e diz: “Durvinha, vem cá”. Ele me deu 20 contos de réis. Eu digo: “E esse dinheiro?”. Ele diz: “Esse dinheiro é aquele dos cabritos seus”. Eu tinha uns cabritos gordos, bonitos. Lá em casa nós só comíamos carne de cabrito. Meus irmãos matavam cabrito, retalhavam e vinham vender carne em uma cidade que chamava Jeremoabo, no estado da Bahia. Ele me deu os 20 contos de réis e disse:  
“Esse dinheiro você guarda em segredo porque foram aqueles homens que passaram aqui. Eles comeram os seus cabritos e mandaram o dinheiro para você”.
Era um dinheirão. Em vez de ficar com raiva, eu fiquei foi muito alegre com aquilo. Fiquei com o dinheiro. Eles acoitaram no sítio de meu pai, detrás da roça, uma lavoura grande de algodão. Eles fizeram um acampamento detrás da roça, na cerca, e lá ficaram. Tomaram amizade com meu pai e de vez em quando aparecia um lá em casa, que era o cunhado de Lampião, Virgínio. Ele ia montando uma mula bonita por dentro da caatinga até lá em casa. Ali ele não tinha perseguição nenhuma, ficava lá escondido. Quando é um
dia ele me convidou para sair. Eu fui embora com ele para outra fazenda perto. De lá ele ia para onde morava Maria Bonita. Eu nunca tinha visto essa Maria, mas ela morava perto do Arrasta-pé. Conheci ela mais Lampião, que nós ficávamos tudo junto.

Maria era muito bonita. Outros dizem que ela era feia, mas ela era muito bonita, divertida. Já Lampião era feio, coitado. O olho dele era meio escuro. Mas ele tinha uma prosa muito boa. Ele só agradava quem agradava ele. Eu fiquei muito tempo no mato com Virgínio. Eu era tão inocente, não sabia de nada, era uma bobinha. Depois nós atravessemos da Bahia para Pernambuco, mais Lampião e a turma toda, a pé. A gente só andava de cavalo quando ia mudar para outro estado. Mas quando tinha uma volante grande atrás de nós, era tudo a pé, para a polícia não pegar o rastro. Fiquei com ele muitos anos, andamos tudo quanto foi lugar na Paraíba, Pernambuco, Alagoas e outros estados de lá, a pé. Mas nunca fui na praia. Vi o mar agora, quando fui de avião para Bahia ver meus parentes. Vi o mar lá de cima do avião.

Tive duas filhas com Virgínio. Dei as duas e não tive notícia nenhuma. Diz que meu pai chegou a criar uma das
meninas, mas não sei se era a minha não. Não podia ter criança no bando, com medo de chorar e a polícia encontrar nós. Eu não sabia cozinhar, quer dizer, sabia assim, já ouviu falar em imbu? Lá tem uns pés de imbuzeiro, aqui não tem não. Tem umas batatas grandes. Arranca aquilo, tira o miolo. Mata um cabrito como daqui a uma légua, leva na cacunda e tira o couro pra bicha morrer. Enche a batata de carne, cava um buracão no chão, muita dificuldade para fazer a buquinagem. Enche aquilo de carne, põe aquela bubuca com carne dentro ali no buraco, com terra queimada, rebuliça de terra e põe fogo em cima, tampado. No outro dia ou de tarde, abre aquela carne cozida gostosa, junta toda a gente e come um pouquinho.

A mulher no cangaço só fazia boniteza. Passava ruge, naquela época não tinha batom. Penteava aqueles cabelos bonitos, cada cabelão. Ficava lá numa rede balangando. Quando a polícia vinha e atirava, ficava lá tudo no chão. A gente deixava tudo. Eu costurava roupas, mas não sabia não. Aprendi por curiosidade. Meu
marido, Virgínio, ele era costureiro. Ele punha aquelas flores no bornal, moedas de ouro no chapéu, era ele quem pregava. Ele era todo enfeitado, era um homem muito bonito. Mas não era ciumento não. Ele era muito bom para mim. Fiquei triste quando ele morreu, mas lá ninguém sente tristeza não. Não sente tristeza porque o medo não deixa.

Quando ele morreu, fiquei andando mais outra amiga minha no bando, sem solução. Quando Moreno chamou para nós ir embora, ele foi e perguntou se nós queríamos ir embora, que ele mandava nós, sentava nós para nós viver. Eu falei que não queria não. Ele então perguntou se eu queria ficar mais ele, fiquei e estou até hoje com ele.

De repente nós se viu sozinho no cangaço. A gente só ouvia falar que tinha matado Lampião. Nós andávamos e onde nós tínhamos assistido fogo, achávamos pé, ossada... Nós saímos do cangaço na festa de Tacaratu. Nós caminhamos três meses à noite escondidos, a pé, até chegar em Montes Claros. A vida foi doída.
Nunca dormimos em casa, dormíamos debaixo de uns paus. Tinha um caldeirãozinho que a gente cozinhava, mas só comia peixe e farinha na beira do rio São Francisco, até nós chegarmos na lapa de Senhor Bom Jesus e, depois, em Montes Claros. Nós viemos subindo o rio São Francisco, Cabrobró, Orocó, Ibó. Passemos onde houve a guerra de Canudos. Cada buraco numas paredonas... Passava lá e até arrupiava. É chão, é terra até chegar aqui em Minas Gerais.

Nós viemos para Augusto de Lima só sofrer. Era ele cortando lenha e eu carregando no braço para empilhar até dar 1,20m de altura. Fazia assim para nós vender. Vendia para fazer carvão. Quando era dia de sábado, nós íamos vender, não dava para nada. Nós morávamos em uma terra que chamavam de indigente, que ninguém queria mais. Tinha muito pequizeiro lá. Os pequís caiam nas covas dos defuntos, eles não comiam e nós apanhávamos para nós comer, o pequi das covas dos defuntos.

Lá em Augusto de Lima tive mais cinco filhos. Fiquei dez anos lá sem ter filho até que nasceu Murilo. Minha família é pequena, seis filhos e 14 netos. Gosto demais de minha família toda. Eu tenho uma irmã viva, Ilda, e dois irmãos caçulinhas também são vivos. Coitados, foram os que mais sofreram. A polícia, quando foi em minha casa, tirou o chinelo deles para eles andarem descalços na fuga. Hoje eles moram no Rio de Janeiro. Covardia da polícia. Família de cangaceiro lá não ficou, não. Lídia e Maria Bonita eram vizinhas e a família delas a polícia arrasou. A polícia acabou com tudo. O que não acabou, escorraçou. Eu nunca pensei que ser cangaceiro tivesse alguma importância na história. Eu só pensava na polícia chegar e dar um tiro. Nós dormia era arriado, nos cantos, sentados. Não tinha casa para nós não.

Moreno
"Meus senhores e senhoras, a todos eu peço licença. Vou contar uma história arrancada do meu coração, vou falar um pouquinho do bando de Lampião”.
Meu pai chamava Manuel Inácio da Silva e eu nasci em Pernambuco. Fui batizado em Mata Grande, estado de Alagoas, com o nome de Antônio Inácio da Silva. Me criei até os 16 anos e sete meses no estado do Ceará. Meu pai, quando eu nasci, mudou de Pernambuco. Meu pai fez um crime em Pernambuco. Ele nunca
falou não, mas minha mãe falava que ele fez um crime em Pernambuco e mudou para o Ceará.

Eu era novinho. Criei lá. Tive escola, mas não aprendi nada. Eu aprendi um pouco já depois de homem feito, que eu cheguei aqui em Minas. Meu pai trabalhava na lavoura e minha mãe era só em casa, tomando conta da casa e dos dez fi lhos, cinco homens e cinco mulheres. Todo ano eu ia trabalhar na Paraíba. Com 12 anos eu já saía para apanhar algodão lá. Em 1927, eu estava com 16 anos e sete meses e fui para Juazeiro, na Bahia, para ver se eu podia ser polícia, que eu tinha vontade de ser um policial. Não tinha idade nem tamanho, de forma que não me aceitaram. Eu fui para a Paraíba. Cheguei lá e uma mulher me fez um falso com uma moça, bati na mulher e matei o marido dela. Tinha 16 anos e sete meses. Aí eu fui para Pernambuco. Fiquei trabalhando nas usinas, escondendo de ser preso.

Quando foi no ano de 1930, quando mataram João Pessoa, eu estava em Recife e um comandante de Sirinhaém falou: “Olha, eu vou te colocar na polícia”. Quando ele falou, pensei: “Graças a Deus vou ser um policial”. Ele foi e me deu um documento, eu não tinha registro, não tinha nada, e ele me deu uma carta para eu apresentar no quartel de Recife. Na época, eu trabalhava em usina e tinha conhecimento com o coronel Antônio Fontes e pedi a ele uma carta de representação. Ele me deu e fui para o quartel. Foram quase 15 dias junto com os policiais, esperando o decreto abrir. O dia que o decreto abriu tinha homem demais a escolha, só homão forte; eu, como diz, era aquele garrancho. Não quiseram eu não.

Eu trabalhava de barbeiro e fui trabalhar em uma barbearia em Santana do Ipanema, em Pernambuco. Lá, a barbearia só dava movimento em dia de domingo e dia santo, quando vinha gente da roça. Falei com o dono da barbearia que ia deixar a barbearia e ia trabalhar na roça, que dava mais para mim. Ele me propôs de trabalhar nos dias de domingo e dias santos na barbearia e o resto na roça. Assim eu fiquei. Até que vai na roça um homem e me chama:  
“Seu Antônio, estou com medo dos cangaceiros vim aqui. Se o senhor quiser tomar conta de minha casa, o senhor fica trabalhando seguido, em vez de trabalhar um dia para um e um dia para outro”.
Eu peguei o serviço e, com um mês e pouco, os cangaceiros chegaram. Encheu o terreno de cangaceiros.  
“De quem é essa casa aí?”, perguntaram.
E eu disse: “De Seu Antonino”.
Eles me deram uma carta e mandaram entregar a Seu Antonino. Quando ele veio, entreguei a carta a ele, que me perguntou:  
“Seu Antônio, o que eu posso fazer com esses homens? Eles me pedem 200 mil-réis e eu não sei o que eu vou fazer”.
E eu disse a ele: “Seu Antonino, eu não dou conselho ao senhor para dar nem para não dar, mas se fosse eu, eu dava, porque por 200 mil-réis pode salvar a criação”.
Ele concordou, foi embora e depois de três dias voltou com uma carta com o dinheiro e me deu. Passaram-se mais de um mês e os cangaceiros chegaram. Entreguei a carta para eles.
“Olhe, fale com seu senhor que se vier qualquer cangaceiro aqui, ele avise que foi Virgínio, cunhado de Lampião que esteve aqui e nenhum cangaceiro vai fazer nada com o seu senhor”.
E me convidaram para ir com eles. Eu com vontade de ir porque tinha vontade de ser polícia e, quando vi o pessoal armado, pensei: “Se ele me chamar eu vou”. Mas fiz que não queria ir. Por fi m, disse:  
“Não posso ir porque eu não entreguei a fazenda do homem. Entregando, eu vou, mas se não entregar, não posso não”.
E Virgínio respondeu: “Então você entrega e breve nós vêm te buscar”.

Mais uns dois meses se passaram e eles vieram. Era por volta de 1935. Eu fui embora com eles e, com uns três dias, Virgínio chegou com um homem e disse: “Aqui é um presente que eu trouxe para você”.
Eu pensei: “Se eu não matar esse homem, eles vão me matar”. Eu fui e matei o homem. Matei o homem e eles tomaram conhecimento comigo.

Logo, com uns quatro ou cinco dias, teve um tiroteio e eu assisti e não fui esmorecido. Eles viram, tomaram aquele conhecimento comigo e aquela confiança. Foi Luís Pedro que botou o apelido em mim de Moreno.
Ele disse:  
“Olha, vocês, cangaceirada, a partir de hoje, é para chamar esse moço aqui de Moreno”. 
Por Moreno eu fiquei. Eu era homem de confiança deles até o dia que Virgínio, cunhado de Lampião, morreu. Eu fiz o enterro dele. Virgínio morreu em um tiroteio, em uma emboscada. Antes dele morreu Jacaré e eu fiz o enterro dele. Morreu Gato e eu fiz o enterro dele. Gato saiu baleado em Piranhas, com arma surda que não dava explosão, mas eu vi. A bala batia no chão e levantava poeira. Eu atirei na cabeça de quem atirou. Eu vi a arma saindo, não sei se acertei, mas eu atirei.

Tiramos "Gato" que estava baleado e com sete dias ele morreu. Daí pra cá deu muito tiroteio, Nossa Senhora, eu assisti muito. Todos esses morreram e a polícia não ficou sabendo. Finado Virgínio morreu sete meses antes de Lampião, mas ninguém ficou sabendo porque eu fiz o enterro dele.

Agora, em junho de 2006, quando eu fui ao Ceará, eu tive notícia de que acharam a sepultura dele. Nós cavemos bem raso, porque não tinha ferramenta, foi cavador de pau e a terra é muito dura. Quando ele caiu, Durvinha ia à frente com dez homens, ou onze, e eu mais ele sozinhos atrás. Mas ia tudo perto uns dos outros. Eles passaram do córrego e não houve tiro, quando nós dois passamos, já atiraram, plá-plá. Nós pulamos dos cavalos no chão e atiramos. Ficaram os companheiros atirando por detrás de nós, eu no meio mais ele e os embosqueiros dentro do córrego. Tem hora que eu penso que essa bala que pegou fi nado Virgínio pode ter sido de um companheiro. Mas eu não sei. Eu saí atirando de ré e falei:
Vamos tirar Virgínio, que ele está morto. Faz uma linha de fogo, avança e vamos atirar”.
Houve muito tiro. Os embosqueiros correram. Eu desarreiei Virgínio, dei o bornal para um e as armas para outro.
Agora  vocês cessem fogo, põe ele na cacunda e sai com ele até quando estiverem cansados. Eu vou ficar aqui. Se vocês ouvirem tiroteio, correm com ele que é para a polícia não tomar e cortar o pescoço dele”.
Para a sepultura de Virgínio eu cortei muito mandacaru, xiquexique e tampemo, porque ele foi enterrado raso. Enterramos e saímos. Eu fiquei dominando essa homanhada dele e duas mulheres, Durvinha, que ficou viúva
com a morte de Virgínio, e uma outra viúva que tinha no grupe. Mas não podia ficar mulher sem homem no grupe. Falei com a moça que ia mandar ela embora mais Durvinha. No dia que eu fui mandar as duas embora, eu falei com Durvinha:  
“Se você quiser ficar comigo, não quiser ir embora, eu te aceito”. Ela então ficou.
Uma parte dos cangaceiros saltou o rio para o outro lado, outros fugiram, outros foram mortos e outros se entregaram. Certo que eu fiquei e quando deu meio de janeiro de 1940, eu andava sozinho mais ela e um cangaceiro. A solução é abandonar as armas Eu tinha medo, mas como se diz, em riba de medo, coragem por quê ? Se fosse me entregar, ia preso e podia ser morto, e eu tinha muito medo de me matarem. Em novembro de 1940, ela ganhou neném, no estado de Alagoas. Antes de um mês de nascido, houve um tiroteio. Ela estava lavando roupa no lajedo. Deu uma chuvinha e ela foi lavar a roupa do menino, Inacinho, filho meu que hoje é Segundo Tenente no Rio de Janeiro. Nesse dia estava só eu mais ela. Cisso não estava com nós. Eu sei que estava ela em riba do lajedo, quando eu vi a polícia e disse:  
“Pegue o menino e vai saindo que eu vou atirar que a polícia vem lá. Eu vou atirar para descontrolar e vai saindo”.
Ela saiu e eu atirei, plá-plá. Eu fui me retirando também e atirando. Quando nós nos encontramos, falei: “Vamos dar o menino”. Quando demos o menino, eu resolvi que ia ao estado do Ceará dar a benção a meu pai. Saí de Alagoas, cortei Alagoas, Pernambuco, peguei o estado do Ceará. Dei a benção a ele de madrugada.
Ele gritou: “Quem é que está falando na porta?”
Eu digo: “É Antônio, pai”.

Ele me abraçou, despedi e tornei a sair na mesma noite, não fiquei lá não. O delegado soube que eu tinha chegado lá e mandou a polícia para lá, para me matar na casa de meu pai, no terreiro. Mas eu não fui mais lá. Encontrei um colega de escola que me contou que um soldado foi sair por um lago e outro soldado atirou
nele. Ele morreu na porta de meu pai, dias depois que fui lá.

Eu tornei a voltar para Alagoas, andei por todo ponto e não tinha cangaceiro mais nenhum. Nem rastro não achava. O padre para quem entregamos o menino mandou carta pedindo para ir embora. Meu pai também pediu para ir embora, mas eu não podia porque tinha esse cangaceiro, não podia deixar Cisso sozinho no mato. Conversei com ele e ele disse: “Vou ver se encontro meu povo. Vou conversar com eles e te dou resposta”.

Ele saiu três dias. Quando chegou, falou: “Olhe Moreno, vou embora”.
Eu digo:  
“Então, se você vai, você não viaja para o lado que o sol chega não. Eu conheço a beira do oceano em vários estados e não tem lugar de você seguir, só topa água. Você viaje para o lado que o sol esconde, que tem lugar de você desaparecer”.
Então ele foi embora. Ficou eu sozinho mais ela. Ainda rodei uns três meses mais ela. Durante esse tempo todo que eu fui cangaceiro, eu nunca dormi um sono em uma casa, foi só no mato, feito bicho bruto. Um dia, nós íamos andando, começando a turvar, eu sozinho mais ela, eu na frente e ela atrás. Ela diz assim: “Moreno, deixa eu passar na frente que eu estou me arrupiando, estou com medo”.

Quando ela passou para frente uma cobra pegou ela. Fui com ela para a fazenda de um padre, mandei pedir remédio a ele, um contra-veneno que ela estava ofendida de cobra. Ele mandou o contra-veneno e eu dei a ela. Quando ela melhorou, eu falei para ela:  
“Cisso foi embora, agora nós vamos arriscar ir embora. O padre está só me pedindo para ir embora. Eu vou escrever para ele que atendo o pedido dele, mas que eu estou precisando de roupa, chapéu, calçado, porque nós não podemos sair nos trajes de cangaceiros”.
Ele mandou tudo e, no dia 2 de fevereiro de 1941, festa de Nossa Senhora da Saúde em Tacaratu, estado de Pernambuco, eu abandonei as armas. Partimos, viajemos, viajemos até que cheguemos aqui em Minas Gerais.

Quando eu cheguei aqui, fui trabalhar de machado, cortar lenha para a Central (Estrada de Ferro Central do Brasil). Cortei lenha muito tempo. Depois fui plantando roça, criando porco e fui trabalhando na lavoura muitos anos. Depois plantava mandioca. Fiz farinha muitos anos, vendendo na cidade. Não precisava entrar farinha de fora não, que eu servia todo o comércio de farinha em Augusto de Lima. Sou como filho de lá. Muito conhecido e conheço todo o mundo. Em Augusto de Lima me conhecem como Pernambuco. Já em Corinto é Zé Perna, de Zé Pernambuco.

Morei uns 25 anos em Corinto, que é umas quatro ou cinco léguas de Augusto de Lima. Tem poucos anos que estou em Belo Horizonte. Eu mexia com comércio lá, mexia com carvão, com carvoeiro. Eu mexi com carvoeiro dez anos, arrendando mato e fazendo carvão. Conforme, ia atrás de burro, ia atrás de boi. Lá eu tinha meus trens tudo, não passava falta de nada. Tinha casa, até mais de uma casa. Hoje não tenho casa para morar, moro na casa dos filhos. É certo que lá eu passava muito bem. Deus me ajudou.

Passaram-se anos e ano, eu falei com ela:  
“Olha, nós temos esse filho em Pernambuco, os irmãos não sabem não. Vamos falar com Murilo, que é o filho mais velho e pedir segredo a ele”.
Eu e ela tivemos mais cinco filhos em Minas Gerais, duas mulheres e três homens. Passaram-se mais uns três
anos e pensei: “Pode nós morrer primeiro, pode Murilo morrer e os outros irmãos não sabem que têm esse irmão”. Falamos para mais dois filhos. Neli foi um deles e resolveu encontrar Inacinho. Quando encontrei meu filho, virei e falei para ele:

“Dentro de meu coração nasceu um pé de flor
Por falta de pingo d’água toda a folhinha murchou
Mas veio o sereno que Jesus Cristo mandou
E no dia 5 de novembro de 2005, meu querido filho Inacinho,
Que ficou em Pernambuco, hoje em Belo Horizonte chegou”.

Eu não sou repentista, mas tenho assim, um ar de repentista, porque:

“Sua senhora, eu não sou cantor, nem canto de profissão,
Mas tenho você guardada dentro do meu coração”.
“Eu não sou poeta, nem sou repentista, nem sou compositor
Mas faço algumas cantorias para mostrar quem eu sou”.

Eu também formo música. Eu cantei, sem ser cantor, lá em Fortaleza.

“Como em folha verde, nas quebradas do sertão,
quem anda na mata virgem, na sombra da solidão,
procurando sua sorte naquelas matas virgens, onde anda Lampião.
Procura a sua sorte, mas lá ainda não achou
Achou o imbuzeiro, no estado de Sergipe
Onde nasceu Expedita, filha de Maria Déia, esposa de Lampião”.

Foto: Leonardo Lara
Fonte: www.escritoriodehistorias.com.br

Continua...

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