segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Padres e Cangaceiros

Misto de Guerra e paz 
Por Ângelo Osmiro Barreto

padre José Kherle
A relação entre religiosidade e banditismo no Sertão nordestino é antiga. O sentimento religioso do sertanejo é especialmente voltado para o culto católico, este ainda remetendo ao catolicismo medieval, onde Deus estava ligado ao castigo, ao fim do mundo.

Predominou por muito tempo essa cultura religiosa nessas paragens, onde a religião ainda repleta de superstições, os milagres ajudavam a suportar as agruras.

A ligação entre cangaceiros e padres atingiu os dois extremos: amigos e conselheiros, mas também ferrenhos inimigos, chegando a travarem combates bélicos.

O cangaceiro Adolfo da Meia -Noite ainda no século XIX, após entendimentos prévios com o Padre Bernardo de Carvalho Andrade, sacerdote que ficou conhecido como bom samaritano dos flagelos da seca em virtude de sua atuação em favor dos flagelados da seca de 1877, uma das mais devastadoras que aconteceu no nordeste, conseguiu a realização de seu casamento. Após a realização da cerimônia o padre foi autorizado pelo cangaceiro a dizer o seu paradeiro, pois segundo o mesmo, estava pronto para morrer sem escolher ocasião.

Padre Bernardo de Carvalho Andrade. 
Fonte Fundação Joaquim Nabuco 

Henry Koster no seu excelente trabalho Viagem ao Nordeste do Brasil cita o padre Pedro, que na década de 1800 mantinha em suas terras, a vinte léguas do Recife, grande número de cangaceiros a seu serviço.

O Padre Pedro foi chamado pelo representante de Dom João VI para prestar esclarecimento sobre os mesmos. Compareceu acompanhado de alguns cangaceiros armados até os dentes. Chegando ao Recife declarou que não tinha culpa de o sertão ser violento, não havia criado aquela situação, porém precisava de proteção, e a solução que encontrara para se resguardar dos inimigos veio por meio dos cangaceiros.

Antes mesmo da fama de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, que ainda submetia-se ao comando de Sinhô Pereira, ficou conhecido no sertão o ataque ao padre Lacerda do Coité. José Furtado de Lacerda era inimigo do Major José Inácio do Barro, esse, por sua vez, amigo de Sinhô Pereira, primeiro e único chefe de Lampião.

 padre José Furtado de Lacerda

Aproveitando-se da amizade com o chefe de cangaceiros, o Major José Inácio arregimenta homens que junto aos cangaceiros do Pajeú atacaram o reduto do Padre Lacerda . seu grande inimigo. O combate durou cerca de uma hora e meia, sendo inclusive ferido no mesmo, Antônio Ferreira, irmão mais velho de Lampião. Este ataque desencadeou uma perseguição ferrenha ao Major José Inácio pelas autoridades cearenses, que culminou com sua retirada para o estado de Goiás.

O cangaceiro Lampião, por exemplo, manteve contatos com padres que ficaram marcados na sua biografia. O encontro com o padre Cícero em 1926 em Juazeiro e sua relação com o padre José Kherle em Serra Talhada, ambos dignos de nota.

O primeiro encontro de Virgulino Ferreira com padres deu-se no seu batismo realizado pelo Cônego Joaquim Monteiro Tôrres, então vigário em Floresta de Navio. Seu relacionamento com o padre alemão José Kherle, deu-se em virtude dele ter sido vigário em Vila Bela, quando das estripulias praticadas por Lampião naquele território.


Durante 16 anos o padre Kherle foi vigário na terra natal de Lampião. 
O cangaceiro devotava-lhe grande admiração e respeito, sempre o obedecendo. 
Foto de 1919 quando foi pároco em Arcverde, PE.  
FONTE: Dicionário Histórico Pesqueirense.

Prova da obediência que Lampião nutria pelo padre deu-se em junho de 1923 quando do casamento de sua prima Maria Licor Ferreira com Enoque Menezes. Lampião invadiu o povoado de Nazaré, distrito de Floresta do Navio/PE, acompanhado com cerca de quinze homens, dispostos a brigar com os nazarenos, seus ferrenhos inimigos.

O padre José Kherle interveio pedindo a retirada de Lampião e seu bando do povoado para evitar brigas e até mortes, pois além da aguerrida população do povoado, estava para chegar uma força policial ao lugar. Lampião atendeu o pedido do padre amigo, porém antes exigiu levar a sanfona, pois se ele não iria dançar, ninguém também dançaria no povoado. Assim foi feito e por intermédio do padre José Kherle evitou-se uma tragédia no pequeno povoado pernambucano.

O relacionamento de Padre e Cangaceiro mais comentado, sem dúvida é o de Virgulino Ferreira com o Padre Cícero Romão Batista, em Juazeiro no Estado do Ceará.

Padre Cícero Romão Batista

O cangaceiro, atendendo o chamado do Dr. Floro Bartolomeu da Costa, grande amigo do Padre Cícero, uma espécie de braço armado do líder juazeirense, adentra em Juazeiro em maio de 1926 com intuito de alistar-se no Batalhão Patriótico a fim de combater a Coluna Prestes. Por esses tempos a Coluna vinha adentrando no sertão nordestino.

Por motivos de saúde o médico baiano Floro Bartolomeu não se encontrava na cidade, sendo o cangaceiro e seu bando recebidos pelo Padre Cícero. O desenrolar dessa história culmina com a famosa patente de Capitão do Batalhão Patriótico outorgada ao famoso cangaceiro.

O grande respeito e admiração que Lampião nutria pelo Padre Cícero de Juazeiro advém também do amparo que o reverendo cearense dava a sua família refugiada no Juazeiro. Fatos facilmente comprovados pelas fotos tiradas na cidade em 1926, mesmo ano da visita dos cangaceiros.


Lampião e seus meninos em Juazeiro do Norte

Padre Cícero, também teve participação decisiva na retirada para Goiás dos cangaceiros de Sinhô Pereira (primeiro e único chefe de Lampião), neto do Barão do Pajeú e Luís Padre, primos e integrantes da família Pereira de Serra Talhada, na época em guerra com a família Carvalho.

Em setembro de 1926, Lampião adentra em Granito, estado de Pernambuco, acompanhado por mais de cem homens. A população amedrontada procura a casa paroquial em busca de refúgio.

O padre do lugar reverendo Joaquim de Alencar Peixoto, destemido e polêmico, que inclusive havia tido desavenças políticas com o Padre Cícero Romão, procura o cangaceiro, mesmo antes que esse o faça. Os dois entraram na casa do padre, conversaram por alguns minutos em particular, nunca se soube o teor do diálogo, o que se sabe é que os cangaceiros, depois dessa conversa, vão embora e inclusive pagam todas as despesas feitas nas bodegas da cidade.


 Padre Alencar Peixoto  
Fonte: Blog Portal do Juazeiro

No Ceará, em 1927, o Padre Vital Lucena tomaria parte da história do cangaço, dessa vez em Limoeiro. Após frustrado ataque a cidade de Mossoró no Rio Grande do Norte, o grupo de facínoras adentrou a região jaguaribana no território cearense. Chegando a cidade de Limoeiro, Lampião e seu grupo foram recebidos pelas autoridades do lugar, que temendo saques e mortes preferem receber os bandoleiros em paz.

Entre os membros da recepção estava o Padre Vital Lucena, que ficou encarregado de arrecadar a quantia de dez contos de reis exigida pelo cangaceiro. Sob o comando do padre, a população consegue arrecadar cerca de dois contos. O próprio padre Vital foi incumbido da árdua missão de entregar o dinheiro arrecadado incompleto ao cangaceiro, mas Lampião recebeu a quantia e de nada reclamou, ficando satisfeito com a quantia recebida.

O Padre Vital ainda pediu um favor ao cangaceiro do Pajeú: que soltasse os reféns que vinham presos desde o Rio Grande do Norte, o que foi negado pelo bandoleiro, alegando precisar de dinheiro. Mesmo assim para ser agradável ao padre, soltou o refém de nome Manoel Barreto Leite.

No dia 19 de abril de 1929, na cidade de Poço Redondo, estado de Sergipe, o padre Artur Passos estava tranquilamente rezando uma missa para sua comunidade quando de repente aparece na igreja Lampião e seus cabras, num total de dez homens muito bem armados.

O padre, segundo seu próprio depoimento, continuou a missa, apesar de constrangido pela presença do bando sinistro do rei do cangaço. Após a celebração religiosa o padre Artur manteve um diálogo com o cangaceiro, tendo inclusive Lampião deixado um bilhete de próprio punho com os nomes de todos os cangaceiros visitantes com suas respectivas idades, exceto o de nome José Alves dos Santos, vulgo Fortaleza, cuja idade não consta na referida carta.

Outro interessante episódio ocorrido envolvendo padre e cangaceiro deu-se em 1937, mas precisamente no dia 10 de outubro, quando do casamento do cangaceiro Corisco, o Diabo Louro, e Dadá. Resolvido a casar com sua companheira de longas datas, Corisco pediu ajuda de um fazendeiro amigo para trazer o padre José Bruno da Rocha, pároco da igreja de Porto da Folha, para oficiar seu casamento. O fazendeiro escreve um bilhete ao padre pedindo sua presença urgente na fazenda para professar uma extrema unção.

O padre atendeu ao pedido o mais rápido possível, ficando surpreso ao chegar ao local solicitado e se deparar com os cangaceiros. O fazendeiro explica a situação e o padre José Bruno rapidamente faz o casamento de Corisco e Dadá. O cangaceiro ainda pergunta se para casar é mesmo ligeiro daquele jeito, o padre com pressa de ir embora, apavorado com a situação, realizou a cerimônia bem mais rápido do que o habitual.

O cangaceiro Corisco teria ainda uma ligação muito forte com o Padre Bulhões, de Santana do Ipanema, em Alagoas, homem muito respeitado em toda a região. Ao referido padre seria entregue seu filho Silvio , criado pelo reverendo e hoje economista, morando em Maceió.

Fato deveras pitoresco foi contado pelo ex-cangaceiro Ângelo Roque da Costa, vulgo Labareda, ao Dr. Estácio de Lima e que foi transcrito no seu livro O Mundo Estranho dos Cangaceiros, eis o relato.

Em uma fazenda no município de Santo Antônio da Gloria, estado da Bahia, chegaram os cangaceiros onde estava havendo uma festa com a presença do Padre Emídio, vigário do lugar. Relata o cangaceiro que chegaram em paz, almoçaram com o padre, além dele, o chefe Lampião e ainda Ezequiel, irmão do chefe, e Virginio, cunhado.

Após o farto almoço resolveu se confessar com o Padre Emídio e assim o fez. Conta o cangaceiro que após a confissão o padre aconselhou:
"Num mate mais os macaco, meu fio. Nos mandamentos tá proibido. Quando pegá um, você cape ele, i sorte capado".
A correlação existente entre Padres e Cangaceiros no sertão, apesar das exceções, reforça mais uma vez o poder que a igreja representava (e ainda representa, hoje em menor escala) para os nordestinos de um modo geral.

O respeito de Lampião, aqui representado como o cangaceiro em geral, para com a autoridade dos padres, traduz de certa maneira o respeito às Leis de Deus e santos representados aqui na terra pelos sacerdotes. Dos poderes oficialmente constituídos, a Igreja parece ser o que mais os cangaceiros respeitavam.

*Historiador e Pesquisador do cangaço/ Membro da Sociedade Cearense de Geografia e História- Cadeira nº 09 - e atual presidente da SBEC Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço.

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