quinta-feira, 7 de abril de 2011

Três imortais

Graciliano, Lins do Rego e Silvino 
O “Jornal de Alagoas”, em 18 de setembro de 1938, publicou a seguinte crônica do notável escritor Graciliano Ramos, escrita após uma visita a Antonio Silvino no presídio:

O automóvel deixou a cidade, atravessou arrabaldes de pequena importância, rodou aos solavancos numa estrada que marginam casas decrépitas, miúdas e descascadas. Moleques de cabelos de fogo, tranquilidade, silêncio, tudo morno e brasileiro.

Silvino

A agitação e o cosmopolitismo ficaram atrás sumiram-se na poeirada; agora parece que as coisas em redor se imobilizaram. O carro que nos transporta avança rápido, inutilmente. Há meia hora, tínhamos pressa contagiosa, mas isto desapareceu. Seria melhor subirmos a cavalo essa ladeira empinada e cheia de buracos, onde as rodas se enterram. Com dificuldade, lá nos vamos sacolejando, dobramos um cotovelo, entramos numa rua esquisita, a máquina cansada geme e pára.

Desço, bocejando. Para bem dizer, não sinto curiosidade. Cheguei até ali porque tive preguiça de resistir e porque me era agradável a companhia de dois amigos. Conversando com eles teria ido a um museu ou a qualquer outro lugar. O homem que desejam ver gastou anos correndo os sertões do Nordeste, numa horrível existência fecunda em histórias que povoaram a infância, com certeza enfeitadas pela imaginação dos cantadores. Depois uma emboscada e o cárcere provavelmente o desmantelaram. Talvez as marchas, as lutas, a fome, a sede, a fuga constante e as fadigas das travessias não o tenham abalado; mas a bóia da cadeia, as grades, a esteira suja na pedra, os mesmos gestos repetidos, as mesmas palavras largadas em horas certas, infinitas misérias e porcarias, inutilizaram o velho herói de encruzilhadas.

É quase certo irmos encontrar um indivíduo sombrio e cabisbaixo, embrutecido pela desgraça, indiferente às façanhas antigas, hoje atenuadas, esparsas. Está ali perto um fantasma triste e desmemoriado, mostrando vagos sinais de vida em movimentos de autômato. Penso assim, olhando o pátio duma habitação coletiva.

Alguém foi anunciar a nossa visita. E, enquanto espero, vejo com desgosto à entrada uma enorme criatura que se achata, se derrama, gorda, paralítica, medonha. Essa figura monstruosa perturba-me, fixa-me a idéia de que ali vive outro ser doente, com deformações invisíveis, piores que as que agora me surgem. Desejo não ser recebido, receio tornar a ver um daqueles rostos pavorosos que há tempo me cercavam.

Recebem-nos. Dois minutos de espera. E estamos na presença de Antonio Silvino, um velho que me desnorteia, afugenta a imagem que eu havia criado, tipo convencional, símbolo idiota, caboclo ou mulato que, medido por um dos médicos encarregados de provar que os infelizes são degenerados, servisse bem: testa diminuta, dentes acavalados, cabelo pixaim, olhos parados e sem brilho, enfim um desses pobres-diabos que morrem no eito e não fazem grande falta, agüentam facão de soldado nas feiras das vilas e não se queixam.

Enganei-me, estupidamente. Antonio Silvino é um homem branco. Seria mais razoável que fosse um representante das raças inferiores, que, no Nordeste e em outros lugares, constituem a maioria da classe inferior. Mas é um branco, e se for examinado convenientemente, não dá para bandido. Não dá e não quer ser bandido. Por isso malquistou-se com alguns repórteres desastrados que o ofenderam.

Conosco é amável em demasia. A hospitalidade sertaneja revela-se em apertos de mãos, em abraços, num largo sorriso que lhe mostra dentes claros e sãos. Esse pé de mandacaru, transplantado para um subúrbio remoto do Rio, deita raízes na pedra do morro e esconde cuidadosamente seus espinhos. Antes de refletir, aperto a garra poderosa.

Antigamente, essa aproximação teria sido impossível: fui como outros, um sujeito muito besta e convencido de não sei que superioridade. Felizmente esqueci isso. Dou razão a Antonio Silvino, que não quer ser bandido, não porque os bandidos sejam muito piores que os outros homens, mas porque a palavra odioso se tornou um estigma.

Um dos meus companheiros é o escritor José Lins do Rego, que em menino conheceu o sertanejo temível no engenho do coronel José Paulino, hoje famoso por ter figurado em vários romances notáveis. José Lins em poucas palavras reata o conhecimento antigo, e Antonio Silvino logo se torna íntimo dele, conta histórias de cangaço, brigas, visitas que faz a outros personagens de romances.

José Lins do Rego
Ultimamente, ao sair da prisão, parece que andou nas terras do velho Trombone e, com sisudez e prudência, espalhou conselhos úteis que resolveram certas dificuldades de família.

Conversando, narrando as suas aventuras numa linguagem pitoresca, ri alto, mexe-se, os olhos miúdos atiçam-se, uma bela cor de saúde tinge-lhe o rosto enérgico, vincado pelo sofrimento. Apesar das rugas, tem uma vivacidade de rapaz: um tiro no pulmão e vinte anos de cadeia não demoliram essa organização vigorosa. Os cabelos estão inteiramente brancos, mas a espinha não se curva, a voz não hesita. É o mais robusto dos que se acham na sala acanhada, em torno duma pequena mesa. Lembro-me dos seus antigos subordinados, viventes mesquinhos que ele submetia a uma disciplina rude.

Nas visitas ao velho José Paulino, ficavam no alpendre, encolhidos, silenciosos como colegiais tímidos, enquanto lá dentro o chefe conferenciava com o proprietário. Certamente esses pobres seres, anônimos, sem menção nas cantigas dos violeiros, desfizeram-se na poesia social, mas o seu comandante está rijo, palestrando com um neto do coronel, não muito diferente do que há trinta anos. Penso na distância enorme que os separava do patrão.

Antonio Silvino dirigiu-se com altivez, não ombreou com eles. Teve amigos poderosos, combateu longamente inimigos poderosos também. Os oficiais das tropas volantes eram seus adversários, o que teve sorte de feri-lo e vencê-lo foi, segundo ele afirma, um adversário leal. Na caatinga imensa, perseguido, queimado pela seca, Antonio Silvino teve sempre os modos dum grande senhor, muitas vezes mostrou-se generoso e caprichou em aparecer como uma espécie de cavaleiro andante, protetor dos pobres e das moças desencaminhadas.

Na prisão desviou-se com soberba dos criminosos vulgares e, não obstante ter vivido em Fernando de Noronha, nunca se misturou com eles. A convicção que manteve do próprio valor manifesta-se em todos os seus atos.

Não parece que o regime penitenciário seja bom para endireitar os condenados. Os guardas da correção sabem perfeitamente como é difícil um indivíduo conservar-se ali sem se degenerar. De alguma forma a degradação justifica a pena: o que volta do cárcere é um farrapo.

Antonio Silvino isolou-se, achou meio de não se contaminar. Foi um preso muito bem-comportado, tanto que lhe permitiram esta coisa estranha: alojar os filhos no cubículo onde vivia. Criou-os, dividiu com eles a ração magra, conseguiu, fabricando botões de punhos, obter os recursos necessários para educá-los. E educou-os de maneira espantosa. Na situação em que se achava seria natural que lhes incutisse ideias de vingança. Nada disso. Ensinou-lhes o respeito à lei, à lei que os afastava do mundo, cultivou neles sentimentos religiosos e patriotismo. Orgulha-se de os ter formado assim, de os ver hoje servidores fiéis do exército e da marinha.

O trabalho desse sertanejo deve ter sido enorme, mas a verdade é que ele não se transformou para realizá-lo. Homem de ordem indispôs-se com outros homens de ordem, fez tropelias no sertão, caiu numa cilada e penou vinte anos para lá das grades.

Continuou, porém, a ser o que era, apesar da cadeia: homem de ordem, membro da classe média, com todas as virtudes da classe média”.

Pesquei em: Jonatas arquivos

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