sábado, 25 de junho de 2011

Cinema e Cangaço

O esquecido filme de Glauber Rocha sobre Lampião


Por Rostand Medeiros



Na década de 1950 do século passado, quando a televisão ainda não possuía a atual massificação, a verdadeira “janela para o mundo” que os brasileiros vislumbravam naquela época estavam nas salas dos cinemas. Além dos açucarados musicais de Hollywood, a plateia nacional assistia as produções das empresas cinematográficas brasileiras Vera Cruz (São Paulo) e Atlântida (Rio de Janeiro).

Apesar de algumas tentativas de se trabalhar com temas brasileiros mais sérios, principalmente a Companhia Atlântida parte para as comédias de costume, de forte apelo popular, conhecidas como Chanchadas, que utilizava como atores figuras conhecidas dos programas de rádio.

Nesta mesma época aportava nas salas de cinemas das grandes cidades brasileiras, filmes da corrente artística do Neorrealismo desenvolvido na Itália. Totalmente diferentes dos musicais americanos e das Chanchadas da Atlântida, os filmes do Neorrealismo italiano buscavam representar de forma objetiva a realidade social e econômica daquele país europeu no período do pós-guerra. Havia nestas películas um forte comprometimento político, onde muitas vezes os temas representavam pessoas menos favorecidas, vivendo em ambientes onde predominava uma grande injustiça social, sem perspectivas futuras e muitas frustrações na busca por dias melhores.

Para muitos dos novos diretores de cinema no Brasil, esta forma desenvolvida pelos cineastas italianos mostrou novas perspectivas de desenvolver sua arte, realizando um cinema que mostrasse a realidade do verdadeiro Brasil, com mais substância e desenvolvido a baixo custo.

Tem início uma nova etapa na história do cinema brasileiro, que ficará conhecido como Cinema Novo. Não havia mais espaço para películas suntuosas e nenhum espaço para os devaneios das Chanchadas. Filmes como Rio 40 graus, e Rio, Zona Norte, ambos de Nelson Pereira dos Santos, mostrando a dura realidade das favelas cariocas, estouram no cenário nacional.


O Cineasta de Vitória da Conquista

Em meio a estas mudanças um jovem baiano de Vitória da Conquista, chamado Glauber de Andrade Rocha, vem fazer parte deste novo movimento do cinema tupiniquim. Conhecido pela frase “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, não se discute a importância deste cineasta dentro do Cinema Novo, principalmente no tocante a sua genialidade.

Na filmografia de Glauber Rocha, duas de suas principais obras tinham contextos ligados a temática do cangaço e foram consagrados pela crítica internacional. Estou falando das películas Deus e o diabo na terra do sol (1964) e Dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969).

Mas como pessoa que assistiu a estes clássicos e outras obras de Glauber Rocha, estranhava o fato deste cineasta não ter trabalhado através de sua arte a figura maior deste movimento de banditismo, Virgulino Ferreira da Silva. Nunca compreendi o fato deste diretor não haver retratado aspectos da vida de Lampião, coisa que poderia ter realizado através de um documentário.

Recentemente, quando realizava uma pesquisa sobre os cinemas potiguares da década de 1970 nos velhos jornais potiguares na hemeroteca do nosso Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, me deparei com uma interessante notícia afirmando que Glauber Rocha teria dado início a um projeto para filmar a vida de Lampião.

A Conquista do Sertão Por Lampião

Na página 4, da edição de sexta feira, dia 24 de novembro de 1972, no extinto jornal “A República” encontro a manchete que apresento na fotografia abaixo. Este material, uma reprodução da revista portuguesa “Vida Mundial”, iniciava afirmando que Lampião “já havia sido tema de vários filmes nacionais”, iria novamente invadir as telas com seus “cabras, seus tiros e suas artimanhas” e a direção seria de Glauber Rocha.

Aos jornalistas Glauber comentou que desejava dar ao “seu” Lampião uma visão “mais original”. Afirmou aos jornalistas portugueses que em “um ou dois anos” a película estaria pronta e já tinha até mesmo um título; A Conquista do Sertão Por Lampião.


Para Glauber havia uma dificuldade em conhecer, em decifrar, a figura de Lampião. Comentou que ainda não tinha feito filme, pois “não conheço muito bem o caráter de Lampião; li muitos livros sobre ele, mas é um personagem controvertido, e ainda não tenho nenhuma ideia sobre ele, e também não quero criar uma visão romântica”.

Glauber sentia a mesma dificuldade que muitas pessoas têm ao tentar compreender a figura de Virgulino Ferreira da Silva, quando leem livros sobre a sua vida.


Revista portuguesa Vida Mundial

Outra dificuldade para a realização da obra naquele momento era saber quem seria o ator que iria representar Lampião. Disse que tinha dificuldades em eleger este ator, pois não conseguia concluir pelas fotos existentes nos livros, se Virgulino “era baixo ou alto”.

Mas o diretor baiano tinha a ideia clara da linguagem cinematográfica a ser utilizada nas filmagens sobre a vida de Lampião. Para Glauber “Quanto ao problema da linguagem, penso sempre ao nível do plano e nunca ao nível do argumento. Não parto do roteiro para fazer os meus filmes, mas, sim, dos personagens. Se não consigo resolver uma personagem em função de um plano, corto o personagem e não repito o plano. Isto não é uma posição estética, mas cinematográfica, porque, para mim, o cinema é o próprio estilo”.

Com Faulkner na Mão, os Atores a Vontade e Muito Amor pelo Nordeste

Para a reportagem de “Vida Mundial”, reproduzida pelo jornal potiguar, o diretor de cinema brasileiro revelou seu forte entusiasmo pelo escritor americano William Faulkner (1897 – 1962). Afirmou que na hora das filmagens estava sempre a mão com um exemplar de O Som e a Fúria, Absalão! Absalão!, Os Invencidos, Luz em Agosto e outros. O fato de Glauber ter estes clássicos do escritor americano era uma fonte de inspiração, pois para ele havia o desejo de filmar como se “estivesse escrevendo uma novela, um monólogo direto, no estilo de Faulkner”. Glauber declarou que este era o escritor que mais admirava.

Para as filmagens de A Conquista do Sertão Por Lampião, Glauber afirmou que teria uma atitude liberal para com os atores, deixando a improvisação seguir a vontade. Tinha até uma palavra de ordem para aqueles que iria dirigir; “inventa teu próprio personagem”, contanto que desse tudo certo, senão ele como diretor faria algum tipo de intervenção. Mas afirmou que quando tudo corria bem no desenvolvimento do filme, “deixo os atores improvisarem com liberdade”.

Glauber comentou na reportagem seu orgulho pelas raízes nordestinas e do entusiasmo de ser “natural desta região e estou muito ligado a ela”.

Mostrando como as filmagens e as repercussões de Deus e o diabo na terra do sol e Dragão da maldade contra o santo guerreiro tiveram em sua importante carreira, finalizou a entrevista comentando que desejava fazer “unicamente filmes de cangaceiros”. Mas completou dizendo “embora não queira, porque pode parecer uma repetição”.

Neste último trimestre de 1972 o cineasta baiano estava oficialmente exilado em Cuba, onde permaneceu até dezembro daquele ano. Segundo a biografia de Glauber, existente no site da Fundação Tempo Glauber Clique Aqui, durante o ano de 1972, ele conclui junto com Marcos Medeiros o filme História do Brasil.

Nesta época manteve encontros com exilados e lideranças da esquerda brasileira como Vladimir Palmeira, José Dirceu, Fernando Gabeira, Miguel Arraes e outros. Neste período ele viajou com destino a Roma e Paris para comprar cerca de dois mil livros para a realização de pesquisas. Creio que foi nesta ocasião em que circulou pela Europa, que ele concedeu a entrevista para a revista portuguesa “Vida Mundial” de 28 de outubro de 1972, reproduzida nas páginas do jornal natalense.

O Que Foi Feito de A Conquista do Sertão Por Lampião

Quem pesquisar a filmografia de Glauber Rocha não vai encontrar nada referente a película "A Conquista do Sertão Por Lampião", pois Glauber não a realizou.

Para o Professor Mauricio Cardoso, do Departamento de História da USP-Universidade de São Paulo, autor do artigo Glauber Rocha e a tentação do exílio (1972-1976), publicado no livro L’exil brésilien en France-Histoire et imaginaire – O exílio dos brasileiros na França-História e imaginário, SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos; ROLLAND, Denis (Organizadores), Paris, Editora L´Harmattan, 2008, pp. 327-339, de todos os diretores do Cinema Novo, Glauber foi efetivamente o mais ativo e reconhecido no exterior.


Em 1969, no Festival de Cannes, o filme O Dragão da maldade contra o santo guerreiro recebeu o prêmio de melhor direção e foi a consagração do cineasta baiano na Europa.

Com o sucesso dos seus filmes Glauber circulava pelos grandes festivais de cinema, dava entrevistas em revistas especializadas, sendo elogiado por consagrados mestres europeus como o italiano Roberto Rossellini, o espanhol Luis Buñuel e o francês Jean-Luc Godard.

Entre 1969 e 1970, através dos muitos contatos internacionais conseguidos, o cineasta baiano roteirizou e dirigiu Der leone have sept cabeças e Cabezas cortadas. O Professor Cardoso aponta que estes filmes sofreram fortes críticas da mídia especializada e dos produtores europeus.

Aparentemente houve uma decepção pelos rumos da obra do cineasta, ocasionando um desinteresse pelo seu trabalho. Glauber, de maior diretor de cinema do Terceiro Mundo, deixou quase que repentinamente de ser assunto de debate cinematográfico.

Cardoso afirma que após estes episódios Glauber não conseguia novos financiamentos para os seus projetos, apesar do seu esforço ininterrupto para emplacar inúmeros trabalhos. As dificuldades em realizar seus projetos, o crescente desinteresse da crítica europeia pelos seus filmes realizados no exterior provocou uma espécie de asfixia econômica e social do cineasta.

O projeto A Conquista do Sertão Por Lampião seria uma retomada dos filmes com cenários no Nordeste do Brasil, agora tendo como personagem principal a figura do famoso Lampião. Já a reportagem para a revista portuguesa “Vida Mundial”, poderia ser uma mensagem para os produtores europeus, informando que o diretor Glauber Rocha voltava suas energias para novamente filmar na mesma área que o consagrou, mas agora tendo como personagem principal o mais representativo chefe do movimento cangaceiro.

Mas não deu certo.

O Que se Perdeu

No arquivo da Fundação Tempo Glauber, entidade criada pela família Rocha para manter seu acervo de 22 filmes e quase 80 mil documentos, com sede na Rua Sorocaba, nº 190, no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro, existem documentos que incontestavelmente apontam que Glauber Rocha tinha o desejo de realizar um trabalho envolvendo a vida de Virgulino Ferreira da Silva. Em meio a 223 roteiros de filmes e projetos de livros, a maioria dos quais inéditos, se encontram anotações com a distribuição de atores para o projeto de um filme intitulado “LAMPIÃO”. Afora isso existe dossiers de projetos futuros, onde surgem novamente títulos como “LAMPIÃO”, “O CANGACEIRO LAMPIÃO” e “O PRÍNCIPE DO INFERNO”.

Talvez uma pesquisa mais apurada no acervo de Glauber Rocha possa apontar o que se perdeu pelo fato de não ter ocorrido esta filmagem. Certamente devem estar guardados apontamentos deste precioso trabalho que ajudariam a ter uma ideia de como Glauber Rocha pensava Lampião e o cangaço.

Certamente seria algo marcante.

Reunir em uma película cinematográfica a controversa história da figura maior do cangaço, tendo como diretor o vulcão criativo que era Glauber Rocha, que iria desenvolver esta obra como se “estivesse escrevendo uma novela, um monólogo direto, no estilo de Faulkner” e dando a grandes atores da dramaturgia brasileira da época a total liberdade de criar seus personagens como eles quisessem.
Em agosto de 1981 é internado em Portugal com complicações pulmonares. Em estado de extrema gravidade é trazido de volta ao Brasil na noite do dia 20, sem acompanhamento médico. Chega ao Rio de Janeiro no dia 21 e recebe soro ainda na enfermaria do Aeroporto do Galeão. Depois é levado para a Clínica Bambina, em Botafogo, onde falece às 4 horas da manhã do dia 22 de agosto.


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