domingo, 13 de maio de 2012

Memórias de um tempo brabo

O cangaço na literatura de Francisco J. C. Dantas

Por Antônio Fernando de Araújo Sá

Resumo: dialogando com a tradição literária do Nordeste brasileiro, a obra do escritor sergipano Francisco J. C. Dantas possibilita um rico diálogo entre literatura, memória e história em que a temática da identidade regional associada ao cangaço emerge, de forma diferenciada, mas sempre recorrente, nos livros Os Desvalidos (1993) e Cabo Josino Viloso (2005). 


Francisco J. C. Dantas
Nascido em Riachão do Dantas (SE), em 1941, Francisco J. C. Dantas tem produzido uma obra literária baseada na sua vivência no interior nordestino, particularmente de Sergipe e Bahia, em que sobressai a preocupação estilística de estabelecer um vocabulário particular destes sertões, pautado na oralidade. A invenção da identidade sertaneja dos Estados de Sergipe e Bahia aparece nas narrativas literárias em sólidas bases históricas e linguísticas do falar de sergipanos e baianos. Os testemunhos das personagens são verossímeis, edificando vestígios das memórias do tempo do “cangaço” e sua herança no imaginário social do sertão nordestino, principalmente dos ecos da literatura de cordel.
“... outra vez Lampião se fizera encantado”.(Francisco J. C. Dantas)

Inserida numa proposta de releitura da literatura brasileira contemporânea, especialmente da prosa romanesca de Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, a obra do escritor sergipano Francisco J. C. Dantas possibilita um rico diálogo entre literatura, memória e história em que o mundo do sertão é construído a partir da visão do homem simples e desvalido e indissociavelmente ligado ao cangaço. Esta opção narrativa enuncia uma tensão entre literatura e sociedade, na qual o escritor, diferenciando-se da tradição regionalista nordestina, estrutura uma requintada carpintaria literária, em que sobressai a preocupação estilística de estabelecer um vocabulário particular dos rincões de Sergipe e Bahia.

Pautando-se na oralidade, sua obra literária denuncia a falta de acesso à cidadania dos marginalizados da seca por meio de seus conflitos existenciais, em que múltiplas vozes se fazem presentes. Ao mesmo tempo, sua escrita possui sólidas bases históricas, como podemos perceber nos testemunhos das personagens que edificaram vestígios de memórias do “tempo do cangaço” e sua herança no imaginário social do sertão nordestino, especialmente, nos livros Os Desvalidos (1993) e Cabo Josino Viloso (2005).

Como a matéria prima dos livros Os Desvalidos e Cabo Josino Viloso trata da memória, partimos do princípio de que tal ideia se vincula ao próprio conceito de cultura, no qual assentam os quadros de sentido e de referência que funcionam como princípios geradores, esquemas de percepção, de apreciação e de ação (CARDIM, 1998).



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Ao mesmo tempo, a memória é uma prática de intermediação entre as estruturas sociais, individuais e coletivas da identidade e os desafios da alteridade, ela se produz também pela mediação de uma cultura, materializando-se em livros, filmes, imagens etc. É neste sentido que tomamos estes objetos culturais como operadores da memória social, revelando mais como uma conjunção, um entrecruzamento do que a suposta oposição entre “memória coletiva” e “história” (DAVALLON, 1999).

Aliás, Wagner de Souza sugere que a verdadeira mimese deve ser procurada nas obras não preocupadas em refletir a história, como em Os Desvalidos, na qual a criação literária vem ao encontro do texto histórico. Segundo ele, “o romance de Dantas, mesmo não fazendo parte da mesma ordem de discurso que o do historiador, apresenta o contexto social e cultural, traz para a narrativa os personagens históricos, no entanto, ficcionalizando-os, sem utilizar o distanciamento da terceira pessoa”. Deste modo, o “que torna seu texto diferente do construído para figurar na estante da história é o posicionamento narrativo escolhido, concedendo voz aos cangaceiros e aos desvalidos para que se saiba a história também pelo viés deles” (SOUZA, 2007, p. 115 e 116).

Como o “literário” é construído historicamente, consideramos as obras literárias como reescrituras, mesmo que inconscientes, em que “o significado não é apenas alguma coisa ‘expressa’ ou ‘refletida’ na linguagem – é na realidade produzido por ela” (EAGLETON, 2006, p. 66). Em A Lição Rosiana, o próprio Dantas (2002, p. 391) sugere que, a literatura não se esgota na retórica [...] que tem de se abastecer nas raízes do contexto de formação do próprio escritor. Que só podemos escrever exuberantemente quando nos abandonamos e abrimos os ouvidos às forças inconscientes que nos rodeiam e alimentaram a nossa formação.

Para ele, a força e a permanência de uma obra literária advêm “do mergulho profundo no chão onde nasceram” (DANTAS, 2002, p. 391). Deste modo, o elemento articulador entre memória e cultura é a categoria sertão, que estrutura a narrativa literária de Francisco J. C. Dantas, em seu diálogo com a tradição literária presente no livro seminal Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, que, segundo ele, traçou “o caminho da literatura ambientada no campo e nas pequenas cidades” como “legítimo fundador da nossa contemporaneidade” (DANTAS, 2002, p. 392).

Desta reescritura da tradição literária do sertão, irrompem nas narrativas de Francisco J. C. Dantas personagens marcados pela miséria, não-cidadãos, mas que revelam, dialeticamente, alegrias, afetos, honra, amor e outros sentimentos, fazendo alta literatura sobre desvalidos, roceiros, mulheres, metamorfoseando a matéria do sertão em pura transcendência, tal como fez Guimarães Rosa.

Um primeiro aspecto da literatura do escritor sergipano que dialoga com a tradição intelectual que remonta a Euclides da Cunha é a transitoriedade do sertão, daquela “possibilidade de que os seres e coisas sertanejos possam transformar-se, subitamente, em seus próprios opostos” (AMADO, 1995, p. 65). Tanto a personagem Maria Melona, de Os Desvalidos, quanto Josino Viloso, de Cabo Josino Viloso, são exemplares desta transfiguração de seres em seus opostos. 

A primeira personagem era uma “criatura de corpo solto e bem apanhado”, “desempenada e peituda”, mas era “mulher afinada e zeladora” e “engolfada em parecer feminina”. Depois da ruptura do casamento com Filipe, ocasionada pela fofoca de Coriolano, transfigura-se em um cangaceiro de punhal, calça e fuzil, “bem mudada em homem macho” (DANTAS, 1993, p. 56, 68 e 105). Logo depois, em atitude heróica, Maria Melona salva a vida de Filipe, em “correria desapoderada” na garupa do seu cavalo, sob a fuzilaria de Azulão.

Já a segunda personagem, Josino Viloso, à sua maneira, fizera uma revolução no lugar, onde o cacete comia e sopapos, rasteiras e cabeçadas eram constantes no cotidiano do Alvide. Por meio de inúmeras táticas – hipnose, compadrio –, o delegado tornara-se uma “evangelizador” da paz. Caracterizado como ausente do sentido de vilão, ou de vileza, mas também “não se destacava pelo talhe brioso, não tinha o porte olímpico, o desempeno espartano, nem galhardia cortês de um cavalheiro” (DANTAS, 2005, p. 77), a personagem fugia da violência a todo custo. Ainda que apareça como antiherói, que de delegado passa a comparsa de assassino profissional, Valenciano, só para não contrariar o compadre, o autor revela o cenário de violência marcante na sociedade nordestina da época, no qual o trabuco dominava as relações interpessoais.

De certo modo, a personagem da narrativa de Francisco J. C. Dantas, Cabo Josino Viloso, no exercício do seu mandato como delegado de polícia, questiona a ideia de um sertão parado no tempo, que remete à descrição euclidiana de que os sertanejos estão abandonados faz três séculos e cujos costumes remetem às sociedades passadas (ALVES, 1997).

Ainda em debate com aquela tradição intelectual, a representação literária do sertão de Dantas aparece como um lugar autêntico e, ao mesmo tempo, indômito. Na prosa romanesca de Os Desvalidos, o desvalido Aribé aparece com sua rala capoeira e alojado no saco de serrote, não passando [...] de um sovaco de chão carrasquento, forrado a lascas de pedra e afivelado de espinhos, muito agressivo com todo suplicante que, corrido dos cachorros, fure o cerco impenetrável, ziguezagueando entre agudas baionetas, e descambe até aqui pra se acoitar (DANTAS, 1993, p. 146). Em outra passagem, o autor justifica a fama de lugar desvalido do Aribé, pois do “sertão, tem o sol e a míngua, mas não a seiva: do brejo, a mesma areia e o saibro rugoso, mas não a chuva. Natureza madrasta!” (DANTAS, 1993, p. 162).

Em Cabo Josino Viloso, a representação do sertão isolado e indômito aparece associada à descrição da cidade de Alvide, no sertão baiano. Inserida num tabuleiro, “em um lençol de areias, destampado de estuporada claridade”, a cidade se resumia a “uma pracinha com seu chão de areia e duas fileiras de casas mal-ajambradas”. No centro da Praça, somente existe um “mastro comido pelo cupim, um madeiro ladeado pelas duas únicas árvores desse pedacinho de tabuleiro enquadrado pelas casas de portas encostadas” (DANTAS, 2005, p. 26, 28, 27).

A ideia de ausência de poder público associada à representação do sertão na literatura também se faz presente nos dois livros analisados. Essa menção pode ser registrada na personagem de Coriolano,
desvalido pelo poder do trabuco, por conta do domínio de Lampião: “O que tinha de gente e terra,
perdera na força do trabuco. Está esvaziado ... e as vozes mortas o arrastam a seu castigo” (DANTAS,
1993, p. 20). Na novela Cabo Josino Viloso, a descrição da delegacia e a condição de delegado sem
provisão são reveladoras da ausência do poder público na região da Bahia:
[...] Como é que um militar da Corporação Policial Baiana tem condições de se estabelecer num vilarejo sem pensão para a bóia e o pernoite, sem um alojamento de tijolo cozido e platibanda para fundamentar a sua Delegacia? (DANTAS, 2005, p. 24).
Próximo da representação clássica do sertão, há menções ao fanatismo religioso, em que a cidade de Alvide é habitada por “terríveis descendentes daqueles brutos que morreram em Canudos, ao lado de Conselheiro” (DANTAS, 2005, p. 27). Paralelamente, Josino Viloso se remete ao fenômeno de Canudos como sinônimo de luta, resistência, coragem e violência, quando lembra sua origem familiar que reporta a: 
[...] uma família dragona e medonha. Me reporto a um tal Chiquitintão, homem de fé do finado Conselheiro.

Na guerra santa, este tal aguentou o tranco à custa de farofa feita de sangue talhado. Comia orelha torrada
de soldado inimigo. Adonde eu digo que compartilho com ele, que não desapartava de uma laçada de forca. Me venho dessa raça pagã que tem o sangue gelado, um povo sem perdão, refeito na impiedade (DANTAS, 2005, p. 78).

Em Os Desvalidos, é registrada também a passagem do séquito de Antônio Conselheiro pelo Aribé, quando de “pescoço entupido de bentinho e patuá”, este povo “beato e romeiro” rumaram para o Ceará, provavelmente os sobreviventes da guerra fratricida (DANTAS, 1993, p. 174).

Assim, as referências históricas e culturais dos dois livros aqui analisados remetem à imagem clássica do sertão como sinônimo dos fenômenos de “fanatismo religioso” e “banditismo”, ambos produzidos pela ausência do poder público que caracteriza a sua história. Aqui emerge o Nordeste da fome, da miséria, do fanatismo, do cangaço, temas que vão marcar toda a produção cultural brasileira contemporânea sobre a região, tanto do ponto de vista sociológico, quanto artístico. É a descoberta do “outro” Nordeste. Contudo, o diferencial da literatura de Dantas é que este “outro” é moldado por uma carpintaria reveladora da sociedade, desprezando a ideologia romanesca presente na geração de 1930, que só percebia a exploração humana nas relações de classe entre patrão e empregado.

Na prosa romanesca brasileira a temática do cangaço serviu de inspiração literária como são os casos do pioneiro livro O Cabeleira, de Franklin Távora, passando por Coiteiros de José América de Almeida, Os Cangaceiros e Pedra Bonita, de José Lins do Rego, Seara Vermelha, de Jorge Amado até chegar ao magistral livro de João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas. Maria Isaura Pereira de Queiroz já havia alertado que a utilização do cangaceiro como tema artístico desempenhou uma função semelhante ao índio para o romantismo na literatura brasileira, na medida em que, a partir da última grande guerra, aquele personagem passou a se constituir em símbolo da nacionalidade.

Para ela, o cangaceiro possibilitava o debate sobre as transformações de uma socidade tradicional em sociedade de classes, ao mesmo tempo em que fornecia uma compensação psicológica aos oprimidos diante das camadas superiores opressoras (QUEIROZ, 1975, p. 514). Neste sentido, o mito do cangaço servia para salientar características que lhe sejam úteis para reforçar a solidariedade interna das coletividades e para distinguir uma das outras as sociedades globais e, internamente, os grupos que as compõem. Os símbolos são, antes de mais nada, brumosos e ambíguos. São estas condições, porém, que lhe permitem captar e expressar os rumos essenciais e profundos do sentir coletivo (QUEIROZ, 1991, p. 68).

Aqui encontramos como elemento fundamental das narrativas históricas e literárias a ambiguidade do cangaço num movimento pendular entre fato histórico e projeções coletivas, favorecendo a leitura mitológica do fenômeno social e construindo certa memória coletiva sobre o Nordeste brasileiro.

Por exemplo, a diabolização e a idealização de Lampião moldaram essa memória, fornecendo um instigante campo de pesquisa, ainda inexplorado, da compreensão do funcionamento dos imaginários sociais e seus mecanismos de apropriação de acontecimentos históricos. Aqui o cangaceiro pode ser representado como um símbolo contraditório associado a múltiplas representações que vão do bandido sanguinário ao bandido social, do justiceiro ao mau-caráter sem escrúpulos, tornando-se, portanto, aberto a várias ressonâncias (SILVA, 1996).

Dialogando com esta tradição literária, Francisco Dantas, em Os Desvalidos (1993), narrou “os tempos do cangaço” em Sergipe, a partir do olhar de Coriolano. O desamparo da personagem sem proteção de coronel demonstra que naquele “tempo brabo”, “pobre não vive sem patrão”. A falta de opção do sertanejo é explicitada na afirmação: “ou se apanha de Lampião ou dos mata-cachorros”, isto é, quando não eram os cangaceiros, era a volante a humilhar o pobre sem patrão (DANTAS, 1993, p. 126, 135).
Como apontou Frederico P. de Mello, na pobreza feita de espinho e pedra do sertão, os jovens que não fossem filho de fazendeiro ou ligado a elite econômica local “restava apenas a alternativa de ser policial ou bandido, uma e outra coisa, aliás, parecendo-se bastante num meio em que a luta diária orientava-se pela sobrevivência” (MELLO, 2004, p. 26).

Assim, a construção do romance mostra outra faceta da memória escrita e da poesia cantada pelo povo, que é a memória daqueles que não se tornaram volantes ou cangaceiros. A relação entre Coriolano e Lampião apresenta-se como ponto nodal para demarcar o espaço e o tempo da narrativa, oferecendo diferentes vozes para o relato ambíguo do mito de Lampião.

Não podemos esquecer que a literatura de cordel colaborou, decisivamente, na construção deste mito, seja produzindo uma “apologia do cangaço”, seja efetuando uma “diabolização” do cangaceiro (SILVA, 1996). Inclusive, ecos da influência da literatura de cordel na construção narrativa do romance podem ser percebidos em referências aos versos de Gomes de Barros tirados por Filipe e lembrados por Coriolano. Ou ainda quando este personagem sonha em ser cordelista, mas “fecha a livralhada, que é muito difícil conciliar leitura com algum trabalho duro que se converte em dinheiro, e se volta a montar um fabrico de bombom de mel de abelha” (DANTAS, 1993, p. 26 e 29). Entretanto, a prosa romanesca de Dantas constrói uma moldura complexa do mito de Lampião.

De um lado, o cangaceiro aparece como sinônimo da violência gratuita do prazer em matar, em que emerge a associação à animalidade, como é o caso da afirmação de que “Lampião é um bicho sem medidas”, “se encrespa todo como uma cobra para o bote”. Ou ainda o “besta-fera é envultado, tem o corpo fechado pelo poder da reza do santo de Juazeiro” (DANTAS, 1993, p. 202 e 132). Nestes trechos da narrativa o cangaço é destituído de qualquer conteúdo social, é produto de ‘um instinto’ quase animalesco (...). Escondem-se os motivos sociais do cangaço, procurando minar a solidariedade popular e denunciar o apoio dos coronéis tradicionais a tal prática (ALBUQUERQUE, 1999, p. 127).

Paradoxalmente, na narrativa também é realçada uma descrição crítica do funcionamento do coronelismo à época de Lampião, mostrando o comprometimento dos poderosos coronéis com a vida criminal dos seus jagunços: Quanto mais graúdo e mais gabado é o nome de um coronel, mais ficam encobertas as armadilhas e patifarias que os jagunços cometem com sua permissão, de tal forma que, botando assim outros culpados pela frente, o manhoso se resguarda dos crimes que financia, e vai vivendo sem que lhe cobrem um só pingo das vilezas semeadas, cada vez mais honradão das larguezas e canduras, engordando a própria fama a desacatos de tamanha impunidade! (DANTAS, 1993, p. 150-1).

Neste sentido, encontramos um olhar mais humano de Lampião, em que a cultura sertaneja abonava o cangaço, como pode ser visto na passagem que o romancista afirma que ele “é um estranho rei corrido e engendrado pela penúria de seu próprio povo” (DANTAS, 1993, p. 15). Lampião aqui aparece como produto do meio, como herói vingador construído pela literatura de cordel e pela memória popular, em que aparece como uma forma rudimentar de agitação social. Na própria fala de Coriolano percebe-se alguma feição de gente quando comenta que “Virgulino metia medo também a esses ricaços malvados” (DANTAS, 1993, p. 80).

Registre-se ainda neste processo de humanização dos cangaceiros a entrada das mulheres nos bandos de cangaceiros, modificando alguns comportamentos. Para Coriolano, foi o encontro com Maria Bonita que o fez amolecer o coração. “Na roda da saia dela, Virgulino bem sabe que virou outro” (DANTAS, 1993, p. 186).

Mas talvez o que mais chame atenção na caracterização de Lampião, nos dois livros analisados, seja a menção à crença no seu “corpo fechado”, constituindo-se no quadro de crendices e superstições comuns ao catolicismo rústico. Inclusive, Coriolano, com receio de ser boato, não explodiu em alegria pelo medo que sentia de Virgulino:

A notícia chegou indagorinha trazida de Boquim, onde o trenzinho, de ordinário a chocalhar atrasado,
cochilando o ano inteiro pelos trilhos, rompeu hoje estabanado na frente do horário, resfolegando fuligem,
estalido e fumaçada, pra espantar mais cedo a morte daquele que ainda trasantontem era gabado por ter o
corpo fechado (DANTAS, 1993, p. 12). 

Em Cabo Josino Viloso, a dimensão desta crença popular na existência do “corpo fechado” de Lampião, por conta de suas rezas fortes presentes no seu embornal, é mencionada pela coragem do personagem em enfrentar à população de Alvide: “[...] Ou é doido varrido... ou anda munido de oração forte contra faca, chumbo e pancada” (DANTAS, 2005, p. 48).

Esta crença do “corpo fechado” de Lampião foi encontrada nas recentes viagens pelo sertão nordestino por parte de Camelo Filho, identificando na literatura de cordel versos que aludem à ideia de corpo fechado, que é uma marca registrada do imaginário do sertanejo. De um modo geral, Padre Cícero e Nossa Senhora das Dores aparecem na maioria das orações rezadas pelos cangaceiros, aparecendo como “protetores divinos” do grupo (CAMELO FILHO, 2001, p. 130 e 135).

No mesmo sentido, Max Silva D’Oliveira reiterou a devoção de Lampião a santos da Igreja Católica, mas também a Padre Cícero Romão Batista, de Juazeiro do Norte/CE. Com base nas afirmações de Piragibe de Lucena, o autor também comenta que Lampião sempre trazia consigo orações de corpo-fechado, bem como orações de São Gabriel, São Paulo, São Pedro, São Jorge, Santa Luzia, São Thiago e a Virgem Maria. Além das orações, D’Oliveira também afirma que assumiu como obrigação dar “esmolas para os necessitados, o respeito aos padres e aos velhos, demonstrando através do pedido de benção por parte do cangaceiro” (D’OLIVEIRA, 1999).

A personagem Josino Viloso também compartilhava, como os cangaceiros, da fé em São Gabriel, que era invocado sempre que a ocasião beirava ao perigo: [...] “beija o escapulário e outros amuletos pendurados no pescoço, balbucia jaculatórias, pedaços de salmo, ladainhas, chama por São Gabrié. Tange as mãos aos esconjuros” (DANTAS, 2005, p. 30).

A menção indireta à figura de Lampião na narrativa novelesca de Cabo Josino Viloso demonstra que o banditismo e pela violência endêmica das lutas entre famílias e clãs caracterizavam o sertão baiano à época e que o estado de guerra permanente fazia com que a manutenção da ordem fosse baseada no exercício da força. A ausência de agências de representação do poder público tornava a cidade de Alvide, lugar marcado pela violência, onde somente “acolhe cria de cobras, de lacraias e de onças. Não há lugar para um cristão” (DANTAS, 2005, p. 35).

Em sua menção à Lampião, o escritor expõe a presença do medo que o bandoleiro impunha nos sertões baianos daquele momento, quando afirma que daquele “armamento tão monstro nem Lampião escapava!”. “Se topa comigo... tava lascado” (DANTAS, 2005, p. 82).

Por ser objeto e a razão do mito nacional, o sertão tem sido preservado no imaginário e na vivência concreta dos brasileiros, ao longo da história do Brasil, como pode ser percebido nas narrativas literárias de Francisco J. C. Dantas. Deste modo, o diálogo entre literatura, história e memória pode ser lido tanto ao nível das relações familiares, nos gestos desempenhados no cotidiano, nos hábitos enraizados, quanto em sua complexa mistura de supressão e de recriação do passado que, apesar do seu caráter fundamentalmente transformativo, permite conservar o essencial da recordação sobre o passado sertanejo.

Portanto, estes dois livros analisados constituem-se em material precioso para o debate histórico e
sociológico do Nordeste na primeira metade do século XX, na medida em que, ao se propor ao “desafio
de compor as vozes da cultura popular em acordes próprios de escritor culto”, como afirmou Alfredo Bosi
(Apud DANTAS, 1993), o autor lança novas luzes sobre a temática do cangaço, fundindo, numa perspectiva pós-moderna, a história e a ficção, no sentido de expor a ambiguidade da trajetória de Lampião
no imaginário social nordestino. Aqui a ficcionalização do cangaceiro serve como ponto de partida para
a revisão da própria história brasileira, ao trazer à baila sua dimensão humana (SOUZA, 2007, p. 98).

Entretanto, para compreendermos tais livros não podemos tratá-los apenas como documentos históricos, sociológicos ou antropológicos, mas como “obras de arte literárias”, pois estabelecem um diálogo crítico com a tradição literária sobre o cangaço no Brasil, elaborando uma rica “reflexão sobre a literatura e o fazer literário, em suas dimensões cultas e populares” (PIRES, 2005, p. 64).

Referências 

ALBUQUERQUE, Durval M. de. A Invenção do Nordeste e outras artes. Campinas/SP; Recife/PE: Cortez/Fundação Joaquim Nabuco, 1999. 

ALVES, Francisco José. Os Sertões como obra historiográfica. In: Cadernos UFS: História. São Cristóvão/SE, v. 3, n. 4, jan./ jul. 1997 (Canudos 100 anos). 

Revista Mosaico, v.3, n.1, p.103-109, jan./jun. 2010 109 

AMADO, Janaína. Construindo mitos: a conquista do oeste no Brasil e nos EUA. In: PIMENTEL, S. V. &  

AMADO, J. (orgs.). Passando dos limites. Goiânia: Editora da UFG, 1995. 

CAMELO FILHO, José Vieira. Lampião: O sertão e sua gente. Campo Grande/MS: Editora da UFMS, 2001. 

CARDIM, Pedro (org.). Cursos da Arrábida: A História: Entre Memória e Invenção. Lisboa: Publicações Europa-América/ Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998. 

D’OLIVEIRA, Max Silva. O cangaço e a religiosidade de Lampião. In: Caos: Revista Eletrônica de Ciências Sociais. João Pessoa,Universidade Federal da Paraíba, n. 0, dezembro de 1999 (endereço eletrônico: . Acesso em: 11.02.2009. 

DANTAS, Francisco J. C. – A Lição Rosiana. In: SCRIPTA. Belo Horizonte, v. 5, n. 10, p. 386-392, 1o semestre 2002. 

DANTAS, Francisco J. C. – Os Desvalidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 

DANTAS, Francisco J. C. Cabo Josino Viloso. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2005. 

DAVALLON, Jean. A Imagem, uma Arte da Memória. In: ANCHARD, Pierre [et. al.]. Papel da Memória. Campinas/SP: Pontes, 1999. 

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 

MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil. 2. edição. São Paulo: A Girafa, 2004. 

PIRES, Antônio Donizeti. Coivaras, Palimpsestos & Novas Lavouras. In: Terra Roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários. Vol. 5 (2005), p. 62-76 [p. 64]. Capturado no endereço eletrônico: . Disponível em: 11.02.2009.  

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. História do Cangaço. 4. edição. São Paulo: Global, 1991 (Coleção História Popular, n. 11). 

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Notas Sociológicas sobre o Cangaço. In: Ciência e Cultura. 27 (5), maio de 1975, p. 495-516. 

SILVA, Patrícia Sampaio. Le symbole et sés diverses résonances: analyse de l’historiographie du Cangaço. Revue Histoire et Société de l’ Amerique Latine. Paris, Amérique Latine: Expériences et Problématiques d’Historiens (A.L.E.P.H.)/Université de Paris 7, n. 4, maio 1996. 

SOUZA, Wagner de. Entre a fé cega e a faca amolada: representações ficcionais do cangaço. Curitiba: Curso de Pós-Graduação em Letras/UFPR, 2007 (Tese de Doutorado).
  
Fonte:  Revista Mosaico

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